quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Entrevista com mestres ceramistas de Icoaraci sr. Levy Cardoso e sra. Inês Cardoso.

Os mestres ceramistas de Icoaraci, Inês e Levy Cardoso, mãe e filho, são parceiros do Laboratório de Etnomusicologia da UFPA através dos projetos de pesquisa "Arqueologia Musical Amazônica" e do projeto de extensão "Arte em Toda Parte: temas transversais como colaboradores sociais". Sua função no LabEtno foi de confeccionar dois conjuntos réplicas de 13 instrumentos musicais a partir dos exemplares constantes na Reserva Técnica de Arqueologia do Museu Paraense Emílio Goeldi, também parceiro do projeto "Arqueologia Musical Amazônica". As réplicas serão depositadas no LabEtno e na reserva de Arqueologia do MPEG. A bolsista Camila Costa é bolsista PIBEX do projeto "Arte em Toda Parte: temas transversais como colaboradores sociais" e faz acompanhamento do processo de confecção das réplicas com registros em audiovisual e demais atividades. Em fevereiro de 2015 a bolsista realizou a entrevista abaixo com os mestres que autorizaram sua divulgação no blog do GPMIA.O projeto "Arqueologia Musical Amazônica" foi contemplado com o Edital Universal 2014 do CNPq.




Camila - Há quanto tempo estão nesta atividade?
Levy- Pode falar a senhora.
Dona Inês- eu estou desde 1970. Foi na minha casa mesmo, pois o meu esposo trabalhava com cerâmica desde quando ele era jovem. Nossas famílias são ceramistas, então eu já sabia como trabalhar, manusear a cerâmica, e o meu primeiro contato foi com meu esposo, na minha casa.
Levy- Quando eu nasci meu pai já trabalhava com cerâmica e eu tive toda uma vivência desde muito pequeno participando, acompanhando os trabalhos, as atividades. Naquela época era uma brincadeira para mim, uma diversão, somente depois veio a se tornar um trabalho profissional, mas, veio dessa relação de vida mesmo, de acompanhar, experimentar.
Camila - Além de vocês, outra pessoa da familia trabalha com cerâmica?
Levy- Na realidade, quando a cerâmica começou em Icoaraci, mais ou menos na década de 1960, a cerâmica ainda era o elemento mais utilizado na vida das pessoas, desde a cerâmica utilitária, como também da cerâmica pra parte de esgoto era feito com material cerâmico, as manilhas, fogareiro. O alumínio ainda não era uma coisa muito presente, então essa relação entre uma geração mais antiga e outra mais nova, acabaram influenciando também lá no futuro, e a gente veio trazendo essa vivência do olhar. Aí, quando o meu pai já começou a desenvolver esse trabalho que era um trabalho, digamos, diferenciado, e que focava mais essa questão da cerâmica histórica, eu já vinha fazendo esse acompanhamento.
Camila- E fora vocês a sua filha também? (pergunta para Dona Inês)
Dona Inês- É a família, eu ele e a Ritinha.
Levy- Na realidade nós somos ao todo quatro filhos, e desses quatro, três que realmente se envolveram com a cerâmica, as duas acompanharam em algum momento, mas não ficaram dentro da atividade.
Camila - Como se deu a parceria com o Museu Paraense Emílio Goeldi?
Dona Inês- Bom, pra nós termos a entrada no museu foi através de um primo meu que trabalhava na época lá, era o Francisco. Primeiro ele trabalhava no parque,  depois que ele começou a trabalhar dentro do Campus e conheceu o Doutor Simões. Ele frequentava muito a minha casa, então um dia ele viu o trabalho do Raimundo (marido da Dona Inês), e disse: Ah,eu vou levar você pra o Doutor Simões! Ele o apresentou e o Doutor Simões logo deu uma peça pra ele fazer, ele fez uma e eu fiz a outra. Eu fiz uma que era um cariatides, e ele fez uma outra peça. Daí abriu as portas para o Museu, com o Doutor Simões.
Camila - Quais os materiais utilizados? Onde são conseguidos estes materiais?
Levy- Quando eu ainda era muito pequeno, eu tinha uma faixa de quatro a cinco anos, quando eu acompanhei o trabalho que o papai fez na rocinha, no Museu, que era um trabalho de réplica. A partir desse acompanhamento, ainda que quando pequeno, deu pra perceber que, alguns elementos que ele passou a utilizar, que ele passou a buscar, não faziam parte do cotidiano da produção cerâmica local. Dependendo da cerâmica, os elementos vão se diversificando. Então nós temos argila, que é o material básico, em alguns casos, dependendo da situação, existem algumas misturas, que eram utilizadas, como o caripé, como o próprio carvão triturado, cinza, na parte de pintura, nós temos os engodos, que são os pigmentos utilizados pra fazer a pintura e a parte de decoração. Os elementos foram, na realidade, desenvolvidos por nós, aproximando o que poderia ter sido utilizado no passado pelos indígenas, no caso, as espinhas de peixe, madeira, pedaços de madeira. O papai começou a utilizar as hastes de sombrinha pra fazer as linhas duplas, também o raio de bicicleta, semente de Inajá, pra fixar a tinta, foram descobertas, que surgiram com experiências de outros grupos também, indígenas, grupos do Marajó, da área de Quilombo. Estes grupos também tinham e têm uma vivência muito grande na cerâmica. Ele (Raimundo Cardoso) reuniu essas pessoas, na realidade, no espaço dele, e através desta experiência, ele foi juntando esses conhecimentos pra chegar o mais perto daquela cerâmica, que ainda era uma incógnita pra ele, era somente fotografia.
Camila - Quais os objetos feitos com mais frequência por vocês?
Inês- Temos as estatuetas, os pratos, as urnas, nós fazemos muito, essas peças.
Levy- A gente diversifica bastante, porque além da cerâmica arqueológica, que é uma linha específica, a gente tem um grupo, que é uma clientela extremamente específica, nós diversificamos pra uma linha mais decorativa, e hoje nós temos uma linha utilitária, com um design mais contemporâneo. Nós diversificamos muito nessas linhas de produção. Além disso, nós temos uma produção também que é nossa,  uma produção mais dentro de um processo criativo, que talvez, não seja ou ao mesmo tempo, não se pode afirmar, não tem  muita carga de toda essa cerâmica histórica, ou talvez acaba tendo, é uma coisa que a gente cria  a partir desse conjunto de  percepções.
Camila - Como ocorrem as solicitações e encomendas?
Levy- Depende muito, por exemplo, a gente trabalha com algumas lojas, que tem uma forma de negociação que pode ser por encomenda ou pode ser compra imediata. Quando nós temos essa produção disponível, nós trabalhamos também com museus, colecionadores, elas ocorrem na grande maioria por encomendas, porque são peças que dependem muito do interesse de quem vai comprar e do objetivo. Nós temos feito ao longo do nosso trabalho, coleções pra museus, principalmente da Europa, Inglaterra , aqui no Brasil também, Museu Nacional do Rio de Janeiro, dependendo dessa necessidade, fazemos todo o trabalho.
Camila - Vocês já construíram instrumentos musicais? Quais?
Levy- Já passamos por essa experiência, com alguns músicos da área de História ou arqueologia, que passaram, conheceram nosso trabalho e trouxeram propostas pra desenvolver. O nome eu não lembro muito, eu sei que era uma espécie de igaçaba, com alguns furos, com controle do tamanho da boca, não sei se pra sair ou controlar o som, na realidade não sei como funciona muito bem, mas, uma espécie de forma diferenciada. Você vai ter um som diferente, com formas arredondadas e tamanhos diferentes que, dependendo do tipo de queima da cerâmica, influencia muito no som. Quanto mais alta a temperatura, mais agudo é o som e quanto mais baixa a temperatura, mais grave é o som.
Camila - Quais são os cuidados para a construção dos instrumentos musicais?
Levy- A gente tem alguns cuidados, primeiro a espessura da peça que vai ser elaborada e o formato. O formato influencia muito na qualidade do som que está se buscando e, principalmente, os orifícios utilizados para que esses sons sejam produzidos. Deve-se ter muito cuidado na elaboração desses orifícios e como ele vai ser desenvolvido futuramente para produzir o som que sai do instrumento.
Camila - Quais as técnicas utilizadas em cerâmica?
Levy- Uma das mais conhecidas é a técnica de rolinho, faz parte da cultura indígena, quilombola, cabocla também usa muito esta técnica, que também é conhecido como Acordelado. Tem a técnica de Torno que já é mais Europeia, quer dizer entre aspas, mas, que a Europa difundiu, principalmente para cá, para as Américas, é uma técnica que a gente também utiliza. Hoje nós temos a técnica de modelagem com barbutina, ou também conhecida como argila líquida, que é uma técnica muito antiga, principalmente na cultura Chinesa. Para nós é a primeira experiência no Pará, com essa técnica, que desenvolvemos há pouco tempo, tem outra técnica elaborada com placas. São placas de cerâmica que você monta a forma.
Camila - Como se dá o seu processo criativo?
Levy- O nosso processo criativo, quando se trata, por exemplo, da cerâmica Marajoara, é muito preso em todo nosso trabalho. Ele vem de um cuidado em aproximar ao máximo daquilo que foi a cerâmica arqueológica, a cerâmica que foi encontrada e está exposta em alguns espaços, então esse cuidado acaba sendo muito presente na nossa produção. A forma, os desenhos, a característica de cada trabalho que é feito naquela peça, a gente procura ter o máximo de cuidado, até exagerado com relação a isso. Na grande maioria das vezes a gente trabalha com imagens, são fotos e nessas imagens não da pra termos a dimensão real do produto. Como a gente já reproduziu várias vezes algumas dessas peças dentro do museu e a gente pôde acompanhar visualizando e observando, temos uma noção que pode ajudar a aproximar a réplica dessas peças, mas, defendemos a ideia de que uma reprodução tem um valor agregado quando ela é feita com você acompanhando a peça original para aproximar ao máximo daquilo que foi feito pelo artesão.
            Quanto às peças criadas por nós, fica uma grande dúvida, porque a gente não sabe se tudo que a gente monta vem dessa influência ou se vêm de um processo alheio a todo esse trabalho, mas, normalmente temos um tema e esse tema acaba gerando formas, volume e no caso da produção da minha mãe, ela está mais focada em pequenos detalhes, trabalha muito com a questão das cores, são formas que estão muito relacionadas com montanhas, com paisagens da nossa região e ela começa a brincar. Às vezes você tem a impressão daquelas estruturas de mangues na composição das peças e por isso que eu digo que, às vezes, a gente não sabe muito como se forma esse processo. No meu caso eu me prendo mais à questão dessas estruturas da arquitetura principalmente egípcia. Essas estruturas que são mais rebuscadas que tem muito a ver com a questão da natureza, então a gente tem um processo muito diferente eu e ela que, no fundo, acaba tendo uma influência dessa coisa do Marajó e Tapajós.
Camila - Falando especialmente sobre as culturas marajoara e tapajônica, quais as simbologias dos padrões de decoração?
Levy- A gente considera que, no Tapajós, os Cariátes e o Gargalho são aqueles mais utilizados para dar referência a essa cultura, são peças bem específicas, tem uma característica bem singular do Tapajós e, no Marajó, algumas estatuetas, como o falo, que é bem característico e as Igaçabas de formatos arredondados, isso a gente vê bastante.
Camila - Quais as peças que você considera mais representativas dessas tradições?
Levy- Normalmente as pessoas procuram as peças Marajoaras, elas são mais procuradas do que as tapajônicas, talvez porque com as peças Marajoaras há uma maior facilidade de composição de ambiente. No caso da Tapajônica, como ela é mais barroca, ela tem menos cores, são peças mais rústicas e você talvez não tenha uma facilidade de compor em qualquer ambiente contemporâneo. As peças do Marajó já se adaptam mais facilmente, acredito que talvez isto seja um motivo. Um outro motivo que também pode contribuir é que a cerâmica Marajoara é muito mais difundida, muito mais conhecida do que a Tapajônica, a cerâmica Tapajônica não é
tao difundida no mercado como a cerâmica Marajoara.
Camila - Qual a importância do trabalho de vocês para a cultura do nosso estado?
Levy- Uma vez eu estava conversando com a doutora Edith [Pereira do MPEG]e ela falou uma coisa que não tinha chegado até nós.  Ela comentou que esse trabalho tinha uma importância muito grande em difundir, uma vez que as peças originais não podem, quer dizer não tem como você disponibilizar para a grande maioria dos espaços e que as pessoas tenham contato com esse material. Essa produção pode ajudar a difundir e talvez no sentido de criar curiosidade nas pessoas em buscar mais informações, em conhecer mais sobre essas culturas. Então acaba sendo um elemento que vai  fazer com que as pessoas tenham conhecimento sobre todo esse material que existe no estado e que existe na cultura brasileira.
Camila - Você acha que o ofício do ceramista é valorizado no nosso estado?
Levy- A questão de valorização, infelizmente não. Embora a produção cerâmica tenha sido em toda a sua história um dos maiores elementos de promoção do estado, todos os eventos, principalmente internacionais, o estado sempre busca estar representado pela produção cerâmica, mas, em termos de produção é complicado, porque até mesmo como a cerâmica é uma das atividades mais antigas do mundo e até hoje não é conhecida como profissão, você já pode imaginar como ela é tratada em processos de gestão pública. Os recursos para essa profissão geralmente estão alocados naquilo que sobra. Hoje, por exemplo, no estado do Pará os recursos estão na secretaria de promoção social, quer dizer, ai é complicado. Você tem um trabalho que exige produção, exige hoje tecnologia, exige mercado e não tem todo esse suporte que possibilita ao artesão ter facilidade ao mercado. A sua própria produção, a exportação e a adequação do seu processo hoje com relação à questão ambiental, retirada da argila, tratamento deste espaço, tipos de queima, que é uma exigência internacional, isso não acontece. Tanto que a grande maioria dos ceramistas de Icoaraci acreditam que dentro de 15 anos, talvez até com muito otimismo, a cerâmica chegue a uma produção mínima dentro do estado do Pará.

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